Desde os oito anos de idade, a pesquisadora e ex-executiva de tecnologia abre caminhos para as mulheres na Computação. Hoje, ela defende que oportunidades justas trarão harmonia e desenvolvimento para a área
Por Elis Faber
No início dos anos de 1990, quando os computadores eram objetos escassos e a internet era uma tecnologia para poucos, Claudia Melo, ainda criança, teve a oportunidade de escutar histórias sobre programação e visitar a sala de mainframe (um computador bem grande destinado ao processamento de muitas informações) do Instituto Nacional de Meteorologia, em Brasília, onde seu pai trabalhava. “Eu e minha turma da escola fizemos uma visita a esse lugar e, vez ou outra, meu pai me contava histórias sobre o potencial da tecnologia”, conta Claudia. Foi daí que surgiu o interesse da menina de, então, oito anos pela programação. “Não tínhamos computador em casa e não havia ensino de computação básica na escola. Mas o acesso a um curso de COBOL e Basic, linguagens de programação criadas em meados nos anos 1960, me mostrou que uma menina podia programar junto com adultos. Nesse momento, eu removi as barreiras e os estereótipos que podiam fazer com que a computação ficasse distante de mim na hora de escolher a carreira”, diz.
Hoje, com 36 anos , Claudia Melo tem mestrado e doutorado em Ciências da Computação, é professora de Computação na Engenharia de Produção, Faculdade de Tecnologia, na Universidade de Brasília (UnB), e realiza pesquisas na área de transformação digital e agilidade, inovação de gênero e end-user development. E ainda sobra tempo para ser conselheira do Mulheres na Tecnologia, organização que colabora, desde 2009, com o resgate e a libertação do potencial feminino na tecnologia.
Claudia conta que, quando começou os estudos sobre Computação, a área vivia uma fase diferente da atual. “No início dos anos 2000, a profissão de cientista da Computação era nova no Brasil e não havia a discussão de gênero na área. O que já era percebido, de modo geral, eram os homens com salários maiores que os das mulheres e chegando mais rápido aos cargos mais altos”, explica. Ela só enxergou que a tecnologia era uma área vista como masculina quando começou a trabalhar. “Percebi o machismo no mercado de tecnologia através do comportamento de alguns chefes e colegas e quando vi que, nos eventos da área, as mulheres presentes eram apenas as modelos”, diz.
O tempo foi passando e ela, aos poucos, foi somando experiências. Primeiro em empresas, como estagiária na área de suporte e redes, depois, no desenvolvimento de software. “Após me formar, percebi que continuava querendo aprofundar o conhecimento em Computação, aliando-o aos desafios do trabalho”, conta. Em 2002, Claudia se mudou para São Paulo, onde começou a trabalhar com desenvolvimento na área de segurança e cursou disciplinas de mestrado no Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP).
Para ela, duas situações foram marcantes quando chegou à capital paulista. “Aos 21 anos, tive uma chefe que me falou: ‘Você tem potencial natural de liderança, Claudia, mas vai demorar anos para chegar em cargos gerenciais. Isso vai acontecer só lá pelos 40’. Ela estava querendo me dizer que o caminho para mulheres, como para ela própria, era mais difícil e sacrificado, mesmo quando se tinha o perfil”, conta. Em outra ocasião, na mesma empresa, já como consultora, Claudia acompanhou um projeto de fusão no mercado financeiro. “Uma das diretoras, a mais importante na área tecnológica, era alvo constante de piadas. As pessoas diziam que ela era um homem de saia. Os homens que respondiam a ela, com cargos altos, tinham um misto de medo e sexismo. Tive uma única oportunidade de estar perto dela, em um almoço. Ela me disse: ‘aprenda uma coisa: é preciso ser dura com os homens’”, complementa.
Por oportunidades justas para tod@s
Ao longo da carreira, Claudia Melo buscou construir uma ponte entre os estudos na universidade e a atuação no mercado. E as experiências nos dois campos a levaram a se aprofundar na pesquisa sobre as questões de gênero que permeiam o universo da tecnologia. “Participei da criação e execução de estratégias de equidade de gênero quando era CTO da Thoughtworks , uma grande multinacional de tecnologia”, conta.
Atualmente, uma das linhas de pesquisa da professora da UnB é o Gendered Innovations (Inovações de Gênero). “A ideia é ‘consertar’ o conhecimento através de métodos de pesquisa e inovação equitativos”, explica Claudia. O objetivo é mostrar para a sociedade que oportunidades mais justas para todos é a chave para solucionar muitas questões, não só da área de tecnologia.
A linha de raciocínio da pesquisa segue a ótica filosófica de masculino e feminino, como na tradição chinesa milenar do Tao, na qual a totalidade do universo e da natureza se manifesta como o equilíbrio harmonioso e dinâmico entre energias de dois polos opostos: Yin (feminino) e Yang (masculino). Ou seja, feminino e masculino são polos que todos os humanos possuem, com um destaque maior para um lado ou outro, ambos com virtudes e defeitos. “As virtudes femininas vêm sendo menosprezadas, principalmente no mercado de trabalho. Por isso, o conhecimento como um todo está desequilibrado, pois vem sendo concebido e retroalimentado por uma sociedade em desequilíbrio de ideais”, explica Claudia.
Com o passar dos anos, essa visão desequilibrada foi tornando a ideia da superioridade masculina intrínseca à sociedade. Isso, de acordo com a filosofia da pesquisa, se apresenta na forma de um exagero e uma supervalorização das características masculinas. “Hoje, a forma como compreendemos os problemas e criamos soluções é muito mais dominada por ideais ou virtudes masculinas. Valorizamos o analítico, o linear, o planejamento, como se explicassem ou resolvessem todos os fenômenos que queremos lidar. Nos esquecemos do poder da intuição, da empatia, da auto-organização, das virtudes femininas”, diz.
Para Claudia, o papel do feminino na área da tecnologia é reestabelecer o equilíbrio do desenvolvimento tecnológico na era digital. Ela defende que o feminino tem força para direcionar o redesenho das instituições e das relações de trabalho. “O feminino questiona o real propósito de todo esse avanço”, explica. Ela cita também outras características importantes para a busca do equilíbrio na Computação. “Há muitas outras virtudes femininas necessárias à compreensão de sistemas complexos, como o holismo, tipo de abordagem que prioriza o entendimento geral das situações, e a capacidade de lidar com a ambivalência, os paradoxos e a não-linearidade. O mundo em que vivemos é fundamentalmente complexo”, diz.
A pesquisadora acredita que a educação, calcada em princípios e valores positivos, é a base para a mudança necessária para o mundo. Segundo ela, o primeiro passo dessa educação é o autoconhecimento. “Precisamos entender que todos os seres humanos têm um lado feminino e um masculino e que ambos são necessários. Ao ampliar essa consciência interna, será possível iniciar um caminho de harmonizar ambos os lados. Para ter harmonia no mundo é preciso primeiro ter harmonia dentro de si”, explica.
Quando questionada sobre as vantagens que as mulheres podem trazer para o mundo da tecnologia, Claudia diz preferir pensar sempre no conceito de feminino, que está presente tanto em homens como em mulheres. “Na verdade, o feminino não é uma vantagem. O feminino é necessário”, explica a pesquisadora, que está escrevendo uma série de artigos sobre o assunto. Mas ela é enfática ao defender que as mulheres devem sempre escolher o caminho que quiserem seguir. “Hoje, a tecnologia gera novos modelos econômicos, amanhã é outra coisa. Que as mulheres sejam livres para escolher o que as movem, o que se alinha com os seus valores e decidir no que querem trabalhar”, diz.
Elis Faber é jornalista formada pela FAPCOM e autora do livro “Nas Asas do Águias”. Ela ama contar/escrever histórias e busca aprender coisas novas todos dias.
Fernanda Ozilak é designer e ilustradora formada pela FAU-USP. Seu trabalho pode ser visto em http://cargocollective.com/fernandaozilak
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