Por Nana Soares
Clarisse Sieckenius de Souza era da área de Humanas até começar um doutorado em Linguística Computacional. Foi durante a pesquisa sobre processamento de linguagem natural que se envolveu com a computação. Hoje, ela estuda as características das linguagens empregadas no desenvolvimento e uso de sistemas de software e dá aula para a graduação e pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Em 2014, Clarisse foi escolhida uma das 54 mulheres de todos os tempos que se destacam pela atuação em pesquisa na área de Ciência da Computação. A ideia dessa distinção, dada pelo Instituto Anita Borg e da Associação de Pesquisa em Computação Mulher (CRA-W, na sigla em inglês), é ligar a imagem dessas mulheres a um projeto para estimular meninas na área de Programação. Confira a entrevista:
PROGRAMARIA Como você entrou na área de tecnologia?
CLARISSE SIECKENIUS Minha formação acadêmica, da graduação ao doutorado, não foi na tecnologia. Foi toda em Ciências Humanas, especificamente em Letras e Linguística. Eu só ingressei definitivamente na tecnologia depois de concluir o meu doutorado em Linguística Computacional, sobre processamento de linguagem natural, interseção entre a linguística e a computação. Escolhi essa área depois de realizar um estágio de especialização de intérprete de conferências na Universidade de Georgetown, em Washington – essa era a área que eu estudava durante a graduação em Letras. Nessa época, visitei o centro de tradução automática da Organização Panamericana de Saúde. Foi aí que me interessei pela tradução automática, que era uma das principais aplicações da Linguística Computacional. Comecei o meu doutorado com a intenção de trabalhar com o tema, mas, depois, optei por uma área correlata, que é a compreensão automática de textos em linguagem natural, conhecida por processamento de linguagem natural. Posteriormente, fui aprovada numa seleção para professores no Departamento de Informática da PUC-Rio, em 1988. Foi aí que de fato dei início à minha carreira de pesquisadora e docente no campo da tecnologia que, para mim, era novo, mas na qual já havia um grande número de mulheres, alunas e professores trabalhando.
Desde a época que você começou a dar aulas, a participação de mulheres aumentou ao longo do tempo?
Não. Pelo contrário, o número de alunas que tenho em sala de aula, sobretudo na graduação, diminuiu sensivelmente de 1998 até agora. Mas é preciso ressaltar que, hoje, em muitos países, incluindo o Brasil, a Informática e a Computação atraem um número menor de jovens, tanto homens quanto mulheres, do que atraíram no passado, apesar de haver demanda por esse tipo de profissional. Dados sobre as inscrições no Sistema de Seleção Unificada (Sisu), do Ministério da Educação (MEC), de 2014 a 2016, por exemplo, mostram que as carreiras de TI não figuram entre as mais procuradas.
Quais são as barreiras para as mulheres nas áreas de computação, tecnologia e exatas de um modo geral?
Alguns estudos apontam que as diferenças de abordagem e ensino de conteúdos importantes para carreiras nessas áreas entre meninas e meninos começam bem cedo, no Ensino Fundamental. Mas também é importante que todos fiquem atentos ao que as meninas estão se interessando e por quê. Será que é muito diferente daquilo pelo que se interessam os meninos? As respostas podem revelar outros aspectos importantes da questão.
Você sente falta de mais mulheres no corpo docente?
Sim, seria bom ter mais mulheres como colegas, pois acredito que diferentes perspectivas sempre levam a um crescimento da área. No meu departamento, por exemplo, há um desequilíbrio bastante claro entre o número de docentes homens e docentes mulheres.
Mais professoras seria um estímulo para as alunas do curso?
Não sei se o número de professoras é um fator de estímulo ou desestímulo para as alunas. A forma como nós, docentes, influenciamos os nossos alunos é menos por um viés de gênero do que pela competência profissional e pela integridade e empatia pessoal. Esses valores estão entre os docentes homens e mulheres. Mas, se tivéssemos mais mulheres entre as docentes, poderíamos ter novos tipos de projetos, novas preocupações, novos interesses para guiar tanto trajetórias de ensino quanto de pesquisa. Isso afetaria positivamente todos os alunos, não somente as estudantes.
Como as faculdades e universidades podem estimular a presença de mulheres nas carreiras de tecnologia?
Qualquer universidade pode melhorar muitíssimo o estímulo que oferece à formação de seus alunos se investir na interdisciplinaridade, abrir o leque de percepção e estimular uma visão de mundo com menos informação e mais reflexão. Isso vale para qualquer carreira. Informação é fácil de obter, mas a reflexão, com base em muitos pontos de vista, anda fazendo muita falta nas sociedades contemporâneas. A grande contribuição da formação interdisciplinar é justamente oferecer aos alunos instrumentos seguros para raciocinar bem, seguindo trilhas muito distintas de observação. Me parece que esse tipo de investimento institucional resolveria uma boa parte do problema que hoje se coloca como um problema de gênero.
Você acredita que as mulheres sofrem preconceito de gênero na tecnologia?
Há evidências muito claras de opiniões bem diferentes das minhas, particularmente no discurso de muitas mulheres. Eu respeito quem relata que há preconceito de gênero na área, pois, provavelmente, essas pessoas se fundamentam em experiências que eu não tive e cujas consequências eu tenho dificuldade de perceber. Mas, como eu disse antes, a questão de gênero nas carreiras tecnológicas pode correr o risco de ser enunciada de uma forma equivocada, levando consequentemente a soluções que excluiriam muitos homens que provavelmente compartilham muitos dos problemas de que se queixam as mulheres. E eu, com certeza, não sou a única pessoa que pensa desta forma entre os meus colegas de profissão.
O que você responderia para quem diz: “se você for talentosa, vai ter o seu lugar independentemente de qualquer coisa”?
Os talentosos costumam ter o seu lugar, mas isso nunca é independente de qualquer coisa. Sucesso sempre depende de muitos fatores, como as oportunidades que aparecem, a educação que você teve, o lugar que você trabalha e do momento da sua vida.
Qual seu recado para as meninas que querem aprender programação?
Venham! Precisamos muito de vocês!
Nana Soares é jornalista e escreve sobre violência contra a mulher e feminismo em seu blog no Estadão. É autora de “Ao Redor – as diferentes violências contra as mulheres” e co-autora da campanha contra o abuso sexual do metrô de São Paulo. Faz parte do podcast Pop Don’t Preach, que discute feminismo e cultura pop.
Gostei muito da entrevista, perguntas bem elaboradas e repostas objetivas