Os desafios para uma tecnologia inclusiva e que considere os diferentes “sons” da diversidade
Se para Johann Wolfgang Von Goethe (escritor alemão do final do século XVII) a arquitetura é música petrificada, como fazemos, nós, para que as cidades se mexam e sejam embaladas ao som de ritmos contemporâneos?
Primeiro, talvez, caiba perguntar: que música queremos ouvir?
Cada vez mais parecemos procurar misturas de sons, saltar fora de padrões clássicos para abraçar sons inovadores! Por vezes podem parecer músicas experimentais, talvez até com algumas dissonâncias, mas não são mais do que o resultado de uma “jam session” nesta metáfora com “músicos” do governo, indústria, empresas, academia, pessoas, associações e ambiente. É na mistura de todas estas notas que vamos encontrar a resposta para as cidades mais inclusivas.
É frequente ouvir falar da diferença de gênero, da segregação racial ou social ou ainda da dificuldade de responder às necessidades das pessoas com deficiência. Todas estas vozes perdidas na definição das nossas cidades, sem poder de decisão e com sérias limitações no acesso aos serviços, podem ser percebidas como criando um ritmo desafinado… e sabemos quão bonito é o som do desafinado de Jobim! Com a crescente diversificação da população e o número cada vez maior de pessoas vivendo em territórios urbanizados, já não basta tocar um só acorde. Os territórios são únicos, assim como as pessoas e para que a orquestra possa continuar a apresentação já não pode soar bem apenas aos ouvidos de quem assiste do camarote: toda a sociedade tem de estar envolvida.
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), estabelecidos pela Assembleia Geral das Nações Unidas, parte da Agenda 2030, refletem claramente a questão da inclusão no âmbito das cidades sustentáveis (ODS 11) e da igualdade de gênero (ODS 5). Estes têm se traduzido em projetos urbanos frequentemente alinhados com diretrizes supranacionais, nacionais, regionais e locais. Na Europa, a Comissão Europeia dá um lugar de destaque à inclusão social e aos processos participativos no seu novo programa de financiamentos, o Horizonte Europa, dedicando o segundo pilar de intervenção à Cultura, Criatividade e Inclusão Social. Neste âmbito há uma preocupação transversal aos diversos programas de financiamento europeu que incluem a participação cívica e a concriação* entre os agentes do ecossistema urbano na definição de novos modelos. Iniciativas governamentais, como a “Carta Brasileira de Cidades Inteligentes”, ou de entidades como a Rede Brasileira de Cidades Humanas, Inteligentes, Sustentáveis e Criativas têm igualmente desenvolvendo um trabalho de sensibilização para criar cidades mais diversas, inclusivas e justas.
Como podemos, nós, então, incluir a individualidade no desenho dos territórios que devem considerar a dimensão pessoal ao mesmo tempo que evidenciam a vida em sociedade e que reforçam as comunidades? Para definir territórios urbanos, políticas e infraestruturas digitais precisamos considerar ser necessária uma base sólida para a tomada de decisão. Esta base deve apoiar-se nos dados disponíveis, que constituem um primeiro de três desafios aqui apresentados: dados, relações de poder e tecnologia.
O desafio dos dados para uma construção social sólida!
Segundo entidades como a Data 2X, para evitar o “data bias” (viés de dados) e tornar as políticas e modelos urbanos mais inclusivos, os dados têm, eles próprios de espelhar a diversidade social. No caso da igualdade de gênero, são comumente aceitos diversos problemas no levantamento dos dados que incluem, por exemplo, os dados sobre trabalho informal ou disparidades salariais, dados de aproveitamento escolar, inclusão nos processos de tomada de decisão e violência doméstica.
Nós entendemos que todas as partes do processo são essenciais, não podemos desenhar corretamente se a base da pirâmide não estiver bem suportada e estruturada. Como em qualquer boa peça musical, na qual o prelúdio é uma parte importante, a coleta, análise e tratamento dos dados é essencial. Tendencialmente e porque falamos de diversidade e inclusão, quanto mais abertura houver na coleta de informação e de dados, mais oportunidades existem de desenvolver serviços de qualidade que sejam adaptados também a significantes nichos da sociedade. Temos de caminhar, por isso, para uma visão de cidade enquanto plataforma aberta, na qual cada pessoa pode contribuir para uma melhoria da qualidade de vida geral e específica.
O segundo desafio está relacionado com o processo de tomada de decisão.
A sociedade é mediada por forças que estabelecem relações de poder, segundo a ótica de Michel Foucault, ou pela imposição da vontade de uma pessoa ou instituição sobre os indivíduos, como surge no pensamento de Max Weber. Tradicionalmente, quando submetidas ao poder, as sociedades aceitam a ordem; no entanto, começam a ocorrer alterações destas fontes de poder, que modificam consideravelmente os paradigmas sociais existentes. Os poderes econômico, ideológico e político são hoje sistematicamente questionados por novos grupos emergentes; atente-se para a importância que o ambiente, a sustentabilidade, a economia circular adquirem na base de movimentos orgânicos, muitas vezes liderados por jovens e grupos menos “mainstream” da sociedade.
Henry Ford afirmava que “questionar quem deve ser o chefe é como discutir quem deve ser o saxofonista num quarteto: evidentemente, deve ser quem o sabe tocar”. Mas será que isso se mantém uma verdade no contexto atual? Se até recentemente na história era relativamente confortável acolher a mudança nas instituições reorganizando a estrutura e repensando a gestão, com a velocidade de mudança a aumentar exponencialmente, são necessárias novas aptidões. A passagem de uma liderança individual para uma liderança coletiva (à semelhança do que acontece em meios empresariais), o uso de modelos colaborativos e a aposta no valor agregado dos serviços, requerem novas perspectivas, mas também novos canais de comunicação na definição do poder.
Com a crescente importância da individualidade projetada pela tecnologia e, em particular pelas redes sociais, os indivíduos ganham um novo poder que podem exercer sem respeitar as hierarquias tradicionais, dando voz a novos movimentos e palco à imprevisibilidade do comportamento humano. As cidades só podem tornar-se mais inteligentes se considerarem todas estas mudanças, tendo em conta o contexto local, num mundo conectado de forma global.
O último desafio que apresento aqui é o da tecnologia.
Tendo em conta o que foi referido anteriormente e os objetivos iniciais da criação de sistemas como a internet, poderíamos pensar que estamos num mundo totalmente conectado. Ainda que estejamos caminhando na boa direção, com o desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) e o âmbito cada vez mais amplo das redes e estruturas conectadas, a verdade é que, muitas vezes, a tecnologia acaba criando um “fosso digital”, replicando ou mesmo agudizando as diferenças sociais que acontecem no mundo real. Um estudo da União Internacional de Telecomunicações (UIT) revelou, em 2020, que pelo menos 3 bilhões de pessoas não têm acesso à internet e que a maioria das pessoas com acesso é formada por homens. Este estudo prevê ainda que seria necessário um investimento de US$ 428 bilhões para levar a rede para estes 3 bilhões de pessoas até 2030. A mesma entidade dava conta, num estudo de 2019, que apenas 48% das mulheres no mundo usavam internet contra 58% de homens. Fatores como a pandemia que vivemos atualmente agravam esta situação. Se, por um lado, segundo o World Economic Forum, a utilização da internet aumentou 70%, a utilização de aplicativos duplicou e as chamadas de voz triplicaram, por outro, só na América Latina, o fechamento das escolas deixou cerca de 154 milhões de crianças sem condições de ter aulas online por falta de acesso à internet.
Por isso é de suma importância avaliar os serviços que colocamos à disposição dos cidadãos. A digitalização é um caminho sem volta que deve, sempre que possível, ser apoiado; no entanto, devemos também considerar a população que por diversos motivos se encontra excluída da sua utilização. Para além da acessibilidade física à internet, é ainda relevante considerar os conhecimentos técnicos necessários para a sua utilização que deixa populações, frequentemente idosas, desprovidas de apoio.
Qual é a alternativa à tecnologia, se esta parece ser o único caminho para o futuro? Podemos considerar duas coisas: a utilização da tecnologia simples, adaptada à realidade de cada contexto, e a formação e capacitação dos cidadãos para a utilização dos serviços digitais. São vários os exemplos espalhados pelo mundo que usam tecnologias simples para a resolução de problemas identificados pelos cidadãos, como é o caso do MOPA (projeto de gestão de resíduos em Maputo, em Moçambique) ou o instituto MeMaker (que desenvolve sensores, a partir de lixo eletrônico, conectados por meio de uma plataforma de dados – FIWARE- para monitorizar as enchentes numa área de Recife).
“Movimento” final:
Pensar cidades é pensar em um futuro inclusivo, é conceber território, sociedade, economia e ambiente em um processo colaborativo no qual a melodia respeita todos os ritmos de forma harmoniosa.
Formada em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura do Porto (FAUP). Trabalhou em diversas organizações sem fins lucrativos e integrou a direção de associações para a definição de políticas públicas para a juventude. Desde 2011 tem trabalhado no planejamento urbano e gestão de projetos em Cidades Inteligentes. É vice-presidente de Relações Internacionais da Rede Brasileira de Cidades Inteligentes e Humanas, professora no Instituto Universitário da Maia (ISMAI), Professora convidada na Coimbra Business School e CEO da Pointify, uma empresa que desenvolve trabalho na área de Turismo Cultural e Inteligente e Cidades Inteligentes.
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