A frase é de Ana Paula Gomes, baiana, desenvolvedora, apaixonada por resolver problemas com programação e defensora do espaço da mulher na tecnologia
Por Nana Soares
Ana Paula Gomes é natural de Feira de Santana, na Bahia. Descobriu a programação aos 19 anos, ao fazer um curso técnico profissionalizante para poder bancar o faculdade. Antes disso, queria fazer Direito, mas o contato com o mundo da tecnologia fez com que esse sonho ficasse no passado. Formou-se em Análise de Sistemas em uma cidade vizinha da terra natal e fez mestrado em Ciência da Computação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi lá que fez parte do projeto Women Techmakers, iniciativa do Google para apoiar e empoderar mulheres na indústria de tecnologia, e passou a olhar com outros olhos a presença das mulheres na área.
Hoje, aos 28 anos, Ana Paula vive em Belo Horizonte e trabalha como desenvolvedora na ThoughtWorks, uma multinacional de tecnologia criativa e reconhecida em 2016 como uma das melhores empresas para mulheres do setor. Segue apaixonada pelo o que faz e sabe que ainda vem muito mais pela frente. Confira a entrevista:
PROGRAMARIA Como você começou na tecnologia?
ANA PAULA GOMES Aos 13 anos, eu era um desastre em matemática e física. Meu foco era nas disciplinas de humanas e eu queria fazer Direito. Só que, em Feira de Santana, só tem uma universidade pública e o curso de Direito era muito concorrido. Na hora de prestar o vestibular, eu estudei, mas não passei. Então, pensei que eu tinha que trabalhar. Aí, fiz um curso técnico para me profissionalizar e pagar a faculdade de Direito, que fiz em Alagoinhas, uma cidade vizinha. Escolhi o técnico em informática sem ter ideia do que era. Mas, na época, eu tinha computador, curtia Orkut e aí resolvi fazer. Durou dois anos e aprendi programação, configuração de internet e cabos de rede e manutenção em computadores. Quando vi o que era possível fazer com aquilo, fiquei completamente apaixonada. Desencanei do Direito e não tenho um pingo de arrependimento disso.
Logo em seguida você cursou faculdade na área?
Não. Depois do técnico, eu queria ser desenvolvedora. Primeiro, fui trabalhar numa empresa de manutenção de computadores e, em seguida, na área de suporte e testes de uma empresa pequena, coisa que não aprendi no técnico. Na mesma época, comecei a pesquisar setores de qualidade e percebi que prestar atenção nisso era muito importante, porque os produtos que estávamos entregando tinham muitos defeitos. Por isso, fiz um projeto para a empresa abrir um setor de qualidade. Algo bem simples, só explicando quantas pessoas se dedicariam, que software seria necessário e por que seria bom. O dono adorou, o setor foi criado e só eu trabalhava nele. Saí da empresa três anos depois e já havia seis pessoas trabalhando nele. Virou um setor importante da empresa. Um tempo antes de sair de lá, passei no vestibular de Análise de Sistemas em Alagoinhas . Eu ia e voltava todo dia [a cidade fica a 78 quilômetros de Feira de Santana]. Quando faltava um ano para acabar o curso, resolvi me dedicar exclusivamente à faculdade, porque o trabalho começou a atrapalhar.
Você ganhou um concurso para aplicativos que tratam sobre temas sociais. Como isso aconteceu?
Quando eu estava estudando, comecei a programar para Android. Comprei um livro sobre o assunto, que me custou 70 reais, e fiquei pensando no que queria fazer. Sei que resolvi fazer um aplicativo para o cinema de Feira de Santana. A versão ficou bem básica e feia, mas fiquei conhecida na cidade e comecei a dar algumas palestras, algo que eu sempre curti, porque adoro compartilhar conhecimento. Nesse processo, em 2013, eu vim para a Campus Party, em São Paulo, e participei de um hackathon cujo tema era Cidades Inteligentes. Desenvolvi um aplicativo chamado Radar, que servia para cadastrar problemas da cidade e eu e alguns colegas ganhamos o concurso. Nesse mesmo ano, teve um concurso para aplicativos sociais e eu inscrevi o Radar. O prêmio era uma viagem para o Massuchussets Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, e eu só pensava: “Deve ser muito difícil, meu Deus. Já pensou se eu ganhar?”. Mas, sem me inscrever, eu não conseguiria mesmo. Aí, me inscrevi. Fui para a segunda fase, que foi uma semana em São Paulo com uma galera incrível. Foi demais. Já estava conformada que não ganharia e até sentei no fundo do auditório no dia da premiação. Foi aí que anunciaram Ana Paula Ferreira na categoria Tecnologias Sociais. Como geralmente não uso o sobrenome Ferreira, fiquei sem acreditar. Deu uma bugada [risos].
Que inesperado!
Sim, e foi muito legal. Passei uma semana em Boston com tudo pago. Só pude fazer isso porque, um ano antes, eu gastei 70 reais para comprar o livro sobre Android e fazer meu primeiro aplicativo. Quer dizer, o que eu ganhei superou em muito aquele valor. Temos que botar a cara à tapa. Eu me inscrevi em muitos concursos já e, em vários, eu não fui nem selecionada. Tudo é aprendizado, nem que seja aprender a ser resiliente.
Por que você foi morar em Belo Horizonte depois disso?
Em 2013, eu me formei e já dava aula no mesmo curso técnico que eu tinha feito anos atrás. Bateu aquela dúvida do que fazer da vida e eu entendi que, ou eu voltava para o mercado, ou eu fazia mestrado. Só que, em Feira de Santana, tem poucas empresas, menos ainda são as que usam tecnologia. Então, infelizmente, para crescer na profissão, eu precisava sair da minha cidade. Pensei em fazer mestrado para melhorar meus conhecimentos teóricos e, depois, voltar para o mercado. Minhas condições eram que fosse um lugar foda, com praia e que não fizesse frio (risos). Fiquei entre Rio de Janeiro, Recife e Salvador, mas, ao pesquisar sobre minhas áreas de interesse, encontrei a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e adorei o trabalho que eles estavam desenvolvendo.
Sobre o que foi sua pesquisa de mestrado?
Pesquisei a área de Ciência de Dados, ou seja, como utilizar grandes volumes de dados para extrair informações úteis para negócios. Fiz isso utilizando check-ins do aplicativo Foursquare para descobrir o comportamento de usuários e de turistas. Defendi minha dissertação em julho de 2016.
O que você faz agora?
Desde janeiro deste ano, eu trabalho como desenvolvedora na ThoughtWorks, uma empresa de consultoria de software. Penso em um dia voltar para a Bahia, até para ficar mais perto da minha família. Para isso, preciso migrar para um trabalho mais remoto. Mas, por enquanto, eu quero ter uma experiência fora do país e depois voltar para Minas mesmo. Eu gosto muito de ir para o escritório, do meu time, desse contato.
O que fez você se apaixonar por computação?
As possibilidades. É muito massa poder resolver problemas com programação. Você pode resolver problemas simples, mas também problemas complexos, além de descobrir comportamentos, automatizar processos etc. As possibilidades são inúmeras e tudo está mudando sempre, o que te faz poder aprender coisas diferentes. O mais interessante é que esse processo é muito inclusivo. Quando atravessamos a rua, temos um pensamento lógico, um fluxo que facilmente poderia estar num programa. Programação nada mais é do que pegar esses fluxos e colocar em forma de código. Todo mundo tem isso e todo mundo tem potencial, seja novo, seja velho. E na internet tem muito material gratuito. Você não pode dizer que as pessoas têm os mesmos privilégios ou oportunidades, mas, para quem tem acesso, depende muito mais da sua vontade do que da área em si.
Qual a sua relação com o tema mulheres e tecnologia?
No meu primeiro emprego, havia dois técnicos subordinados. Um deles me falou que não ia fazer nada do que eu pedia porque eu era mulher. Ao longo da minha vida, fui chegando à conclusão de que eu tinha que ter um posicionamento firme e fingir que esse problema não existia para não me deixar atingir. “Não estou sendo discriminada, eu vou arrasar”, ficava pensando. Só que fui começando a não perceber os problemas à minha volta. Quando rolou o convite da Women Techmakers, que é uma iniciativa do Google focada em apoiar as mulheres de tech, eu ainda pensava que não tinha que segregar, fazer um grupo só de mulheres e etc. Mas me questionei se eu não percebia isso porque tinha arrumado um jeito de lidar com a questão. E as outras mulheres que precisavam se empoderar? E as que precisam de um ambiente seguro para aprender? E aí, por outras pessoas, comecei a entrar mais nesse assunto.
Você costuma falar sobre o assunto no trabalho?
Eu sou uma pessoa que prefere falar sobre os temas técnicos, mas, no cotidiano, discuto esse assunto com o time. Hoje, em reuniões, eu questiono por que alguém só está olhando para os desenvolvedores homens. Questionar e mostrar para as pessoas é como se conseguíssemos mudar, porque, no dia a dia, as pessoas não percebem que estão enviesadas. Certa vez, em um evento, um cara comentou que queria colocar mais mulheres na equipe dele. Perguntei por que e percebi que era só pra preencher cota. Falei que a motivação dele estava errada e aí ele se tocou. Quando começamos a provocar as pessoas com essas perguntas, causamos a mudança. Fiz o cara perceber que o pensamento dele está enviesado. Vai contratar mais mulheres? Beleza, mas as mulheres precisam conseguir chegar e falar “isso é machismo”. Existe muito machismo nessa área, sim. Se você não está segura, vai assim mesmo, com frio na barriga e tudo mais. Às vezes, vai dar errado, paciência, mas tem que dar a cara à tapa.
Conte um pouco da sua experiência no Women Techmakers.
No meu primeiro ano em Belo Horizonte, eu conheci a comunidade de desenvolvedores do Google, para a qual qualquer desenvolvedor pode entrar gratuitamente. Fui a algumas reuniões e me chamaram para a Women Techmakers, uma comunidade criada para incentivar as mulheres na computação. Eram encontros mensais e sempre uma mulher palestrava sobre algum tema técnico. Nesses momentos, tínhamos 80% de mulheres na plateia. Isso é bem legal, mas, se você tem mulheres só falando sobre mulheres, está errado. Acredito que temos que falar menos sobre o assunto e mais sobre as coisas técnicas. Precisamos de mulheres falando de código, de tecnologia, mulher para ser exemplo para outras mulheres.
Quais são as mulheres que a inspiram na área de tecnologia?
Tem uma desenvolvedora da ThoughtWorks em São Paulo chamada Mariana Bravo. Ela tem uma trajetória de muito crescimento, é muito foda, acessível e humilde. Quero um dia ser como ela. Tem também a Sandi Metz, uma desenvolvedora incrível, principalmente na área de Ruby. Ela tem várias palestras provocativas.
Nana Soares é jornalista e escreve sobre violência contra a mulher e feminismo em seu blog no Estadão. É autora de “Ao Redor – as diferentes violências contra as mulheres” e co-autora da campanha contra o abuso sexual do metrô de São Paulo. Faz parte do podcast Pop Don’t Preach, que discute feminismo e cultura pop.