É crucial iniciar este tema destacando que a intensidade dos desafios relatados aqui é de uma experiência única, e cada pessoa terá suas próprias percepções de um mesmo fato. No entanto, arrisco dizer que um sentimento comum a todos que enfrentam o desafio da transição de carreira é o famoso “e se der errado?”.
Este artigo é uma forma de compartilhar minha vivência para que, quem sabe, ela possa servir de inspiração a quem está passando por esse misto de sentimentos e pensamentos que envolvem a transição de carreira. Spoiler: há luz no fim do túnel. Vem comigo?
Onde tudo começou
Minha jornada profissional teve início por volta dos seis ou sete anos de idade, movida por um sentimento ainda não completamente compreendido: a busca pela “justiça”. Naquela época, inspirada por filmes, livros e pessoas que admirava, decidi que, ao crescer, defenderia os outres. Mais tarde, esse propósito evoluiu para a defesa da justiça, culminando na aspiração de me tornar juíza de direito.
Ao longo dos anos, essa visão mudou para a advocacia, e assim segui por muito tempo até a escolha do curso na faculdade.
Nunca houve, em nenhum momento, dúvida, receio ou angústia. Eu acreditava que sabia o que queria; tinha certezas. No entanto, percebi que o paradigma de ter certezas desde os seis anos até os 17 não é algo que desejo perpetuar, e vou explicar o porquê.
Seguindo a linha das certezas e entendendo que o direito era minha vocação para toda a vida, cursei toda a faculdade. Formei-me aos 21 anos, passei no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) dois meses após a graduação e iniciei cursos de especialização em direito público e direito da família. Formei-me também nessas áreas e atuei em escritórios particulares, chegando até a ser proprietária do meu próprio escritório.
Na carreira jurídica, entreguei-me de corpo e alma, ou melhor, muita alma para ser precisa, exercendo a profissão por aproximadamente seis anos. Seria hipocrisia contar apenas as partes positivas e descrever uma trajetória tranquila. Aqui, abro meu coração para compartilhar os detalhes da minha jornada profissional, pois a compreensão dessa parte da minha história tornará mais fácil enxergá-la, compreendendo meus anseios e frustrações.
No universo jurídico, assim como em outros domínios, é necessário ser forte. Forte não apenas para entender o seu lugar, mas, mais do que isso, forte para compreender o seu lugar como mulher, em um ambiente ainda predominantemente machista. A sensação de ser julgada por ser mulher, pela idade (especialmente no início da minha carreira), pela maneira como se veste e se porta é constante. Em um ambiente onde o julgamento é a raiz das questões, o que estava em pauta não eram as causas, os direitos, os deveres ou a justiça; estava em pauta a minha capacidade de estar ali, de defender o que acreditava desde os seis anos. O que estava sendo julgado era o quanto eu conseguia. Aprendi a ser forte, resiliente, mas, após ser testada em muitas ocasiões e ouvir comentários desconexos, estava exausta.
Questionando conceitos: a desconstrução da ideia de justiça
Exausta de tentar compreender que precisava fazer mais e mais para ser reconhecida, exausta de perceber que o conceito de justiça que eu tinha já não fazia mais sentido. De alguma maneira, vi-me devastada por uma realidade dura, incapaz de defender a ideia de justiça nem mesmo para mim mesma, quem dirá para os outros casos? Após dedicar-me intensamente, enfrentar desafios, oficialmente estava frustrada com a profissão. Aquelas certezas que eu tinha já não faziam mais sentido, e digo, ainda bem. Quando há questionamentos sobre certezas, nunca, repito, nunca deixe de investigar. Se não está satisfeito, mude.
Neste ponto, abro um parêntese. Apesar de tudo o que estava enfrentando em minha carreira, sempre fui uma pessoa inquieta no sentido de não aceitar menos. Sempre acreditei e continuo acreditando que mereço 100% de felicidade e uma profissão que me preencha. Envolvida por esse sentimento e já insatisfeita com a profissão e os sentimentos frustrantes e conflitantes que enfrentava, tentei três faculdades. Uma delas, por sinal, quase me formei. Experimentei farmácia, psicologia e serviço social (faltando praticamente o TCC para concluir esta última). Foram boas experiências, e, já um pouco atenta ao que realmente procurava como profissional, não consegui me encontrar completamente em nenhuma delas.
Lembram que mencionei o paradigma de ter certezas e que não queria perpetuá-lo? Explico: o que não quero perpetuar é a ideia fechada de que devemos tomar decisões eternas, que o que escolhemos agora nos representará para toda a vida. Isso não recomendo a ninguém. Os caminhos, as escolhas precisam estar sempre abertos. Sem ter isso em mente, eu nunca estaria onde estou agora. A única certeza que gosto de perpetuar é que farei sempre o melhor para mim.
Uma jornada inesperada: como a tecnologia entrou na minha vida
Mas como a tecnologia surgiu na minha vida? Em 2014, conheci meu atual esposo, Breno, um jovem na época com 20 anos, que também tinha suas certezas. E sim, nem sempre ter certezas é um cenário ruim; o ruim é não ter tanta certeza das suas certezas e seguir por comodismo. Breno sempre foi o que ele chama de “garoto nerd”, apaixonado por videogames, computadores e tecnologia. Hoje não é mais um garoto, mas segue sendo “nerd”. Ele me mostrou um pouco desse universo, e deixem-me contar um spoiler: eu achava tudo aquilo incrível.
Sabe aquela história de que tudo acontece por uma razão? Deixando aqui minhas crenças, eu acredito muito nisso. Aos poucos, comecei a seguir meu então namorado na época, Breno, em seus eventos de tecnologia. Seguindo a ideia de que somos influenciades pelas pessoas e pelo meio, absorvi aquela cultura desde 2014. Em alguns eventos, enquanto ainda advogava e tentava outros cursos de faculdade, como já sabem, cheguei a participar como ouvinte e muitas vezes da organização dos eventos tech que ele estava envolvido, pois achava aquele universo incrível e, nesses eventos, ele vendo o meu olho brilhar e meu genuíno interesse sempre, me questionava se eu não tinha curiosidade de aprender a programar. Eu, inundada de medo e já calejada pelo sentimento de “eu não sou capaz de fazer isso”, um sentimento que sempre era nutrido por qualquer ato de existência em um tribunal de justiça, por exemplo, respondia ao Breno com um sonoro “NÃO”. Isso não era para mim, eu complementava.
Hoje em dia, sabemos que o cenário tech está sendo populado por mulheres incríveis. No entanto, em um passado recente, como em 2014, observava um cenário um pouco diferente do atual. Havia muito mais homens que mulheres nos eventos de tecnologia, e nos corredores das organizações, percebia uma vontade de que mais mulheres ocupassem aquele espaço. Acompanhava esse desejo sendo exalado por várias frentes, desde a própria organização até os participantes, palestrantes; as mulheres estavam sendo convocadas.
Se não fizeram as contas, faço para vocês: estamos juntos há 10 anos. Obviamente, como seres humanos, mudamos, transacionamos, e cada vez que ele me perguntava se eu não queria tentar uma nova aventura, o meu “não” era enfraquecido, na mesma proporção das minhas certezas. Comecei a criar dúvidas, e o “não” em determinado momento se tornou um “e por que não?”.
Confesso que a história agora fica mais corajosa, mais desafiadora e, por que não dizer, mais inspiradora?
O despertar da coragem: abraçando novos desafios e inspirações
Entendendo meu novo momento, meu “novo eu”, acreditei muito que estava na hora de assumir o controle das coisas e entender que podia fazer o que quisesse, e ninguém, absolutamente ninguém, teria o direito de me julgar. Não queria ser consumida pelo receio de não tentar coisas novas, mesmo que achasse que essa seria a coisa mais nova e louca que tentaria, afinal de contas, a carreira de tecnologia era difícil, era o que eu ouvia desde muito pequena até, e com esse sentimento eu participava da organização dos eventos tech porque pensava que não conseguiria estar do outro lado, aprendendo, apresentando. Aquilo não era para mim, e o que seria para mim? Era um questionamento que me acompanhou por longos meses.
Enfrentando amigues, familiares (que sempre me apoiaram, mas também questionaram na mesma proporção), sobre o porquê de largar uma carreira consolidada no direito para iniciar uma nova carreira, concentrei-me, foquei e decidi que iria tentar, sim, o que considerava a tentativa mais insana: a carreira tech.
O sentimento de tentar a carreira tech já estava totalmente instalado em mim, mas eu ainda não havia dado o start inicial. Sabia que iria fazer aquilo, mas não sabia nem como, nem quando.
A pandemia chegou. E conhecemos bem o impacto dessa frase, infelizmente, conhecemos. Mares de medo, mares de questões. Cada dia em que estávamos bem e nossos entes querides também, era um momento de agradecimento. Diante desse cenário, onde a mente precisava estar ocupada com coisas positivas e, além disso, eu estava 100% do tempo em casa, com um pouco mais de tempo livre, pensei: por que não começar agora minha carreira tech?
Sendo protagonista da minha história, inscrevi-me no curso de Análise e Desenvolvimento de Sistemas da Estácio, um curso EAD. Mas mais que esse curso, a parceria que mais me fez evoluir foi com o Breno, que decidiu ser meu mentor. Ele estava focado em fazer com que eu me sentisse confortável nesse desafio. Aqui fica a primeira lição sobre uma transição de carreira: tenham pessoas mentoras, que auxiliem a deixar o processo um pouco menos turbulento. Tudo é novo, e ter alguém para orientar faz toda a diferença.
Dias e dias passando, e cada aula que assistia, cada linha que anotava no caderno, ou cada linha de código que escrevia, era um mar de oportunidades que sentia dentro de mim. O sentimento de que estava indo atrás tomava conta de mim, o sentimento de “eu consigo” me norteava. Muitos dias ia dormir sem entender algum tema, mas, no dia seguinte, acordava completamente dominada pela vontade de ir lá, sentar e entender aquilo naquele dia. Às vezes, entendia, às vezes não, mas a empolgação em si já me alimentava e inspirava. Em vários dias também acordava com o velho e conhecido sentimento de: “e se não der certo?” Mas um pouco mais sã das minhas escolhas e blindada por experiências, pedia calma a mim mesma e seguia.
Acreditar para conquistar: recebendo a oferta de estágio no iFood
“De repente”, estava orgulhosa do que estava tentando construir. Agora, contava para todes próximos que estava em transição de carreira. Era oficial. Nunca tinha ouvido falar sobre essa expressão, mas não só sabia do que se tratava, como estava vivendo a tal transição. Finalmente, após várias tentativas e outros cursos, estava em um que me fazia sentir satisfeita, desafiada e orgulhosa de mim mesma. Sim, a Raíza de alguns anos atrás poderia ter orgulho do que estava tentando fazer ali.
Associado à faculdade, iniciei alguns cursos de introdução à programação e, com isso, aprendi minha primeira linguagem de programação, Python. Daí para frente, as curvas de aprendizado foram incríveis, a sede por aprender mais e a fome de que toda a transição desse certo me mantiveram vivas.
Após alguns meses de estudo, pensei: por que não tentar um estágio? Sempre achei que o estágio é uma fonte de aprendizado para quem tem a sorte de vivenciá-lo. Assim, comecei minha saga em busca de um estágio na área tech. Inscrevi-me em diversos processos seletivos, recebi “não” da maioria deles. Cheguei até o fim em dois processos de estágio de duas grandes empresas reconhecidas no Brasil e optei, entre elas, por estagiar na maior foodtech da América Latina, o iFood. Concorri com 41.000 inscrites, e foi um processo regado de aprendizado e ansiedade. Afinal, era uma oportunidade que acreditava que me forjaria uma boa profissional, e de fato, eu estava certa.
2022, o ano em que tudo mudou, mas nem tudo. Iniciei o estágio no iFood e enfrentei novos desafios. Essa pressão me impulsionou a ser uma profissional melhor, e, com toda minha experiência, no que eu quero ser e em quem eu sou, essa pressão não foi absorvida de forma negativa. Pelo contrário, absorvi de maneira positiva e construtiva para minha carreira. O medo de “e se não der certo” não me abandonou, e chuto dizer que não me abandonará. Na verdade, chuto mais alto, que esse sentimento não vai abandonar a maioria de nós, mulheres. Mas deixa eu contar uma coisa para vocês: a gente consegue, a gente pode e a gente DEVE tomar o que a gente acredita ser nosso.
Após um ano e um mês de estágio, recebi minha tão sonhada “offer”. Estava sendo convidada a entrar no quadro de profissionais do iFood como Software Engineer. Obviamente, me senti orgulhosa e ansiosa para os próximos desafios. Lembrei novamente que tenho que acreditar no meu potencial, e ele é alto. Isso eu recomendo de olhos fechados: acreditem em vocês, antes de qualquer outra coisa.
Hoje, tenho muito orgulho em dizer que sou uma Software Engineer. Cada experiência que tive, sendo boa ou ruim, cada curso que tentei na faculdade, prazeroso ou não, me tornaram quem sou hoje. O caminho é longo e infinito para me tornar sempre melhor, mas estou percorrendo-o de peito estufado e sorriso no rosto. Por isso, peço que tenham orgulho da trajetória de vocês. Em determinado ponto, cada coisa que você aprendeu vai ajudar a enfrentar o próximo desafio que escolherem. Nada é perda de tempo. Sou grata por ter sido advogada, quase psicóloga, quase farmacêutica e quase assistente social. Elas construíram a boa Software Engineer que sou hoje.
Já ouvi de muita gente boa da área tech que sou um exemplo e que inspiro pessoas. Eu acredito nisso. Esse é o meu maior propósito. Eu posso, vocês podem, nós podemos. Juntas podemos ser inspirações mútuas. Para além do meu coração aberto, deixo aberta a ponte da comunicação, contem comigo. Vozes que inspiram vozes. Eu, você, nós, seguindo a letra de uma música que gosto muito da querida Dandara Manoela: “Sigo hoje forte, mais do que ontem, minha resistência é voz, e se for preciso, eu aprendo a ser feroz”.
Convido cada uma de vocês a serem fortes, resistentes e ferozes. Não desistam nunca do que querem. Ocupem qualquer espaço que acham que lhes cabe, porque ele lhes cabe.
Artigo escrito por Raíza Feitoza, da Comunidade PrograMaria.